sábado, dezembro 16, 2006

UMA COMPARAÇÃO PERTINENTE

Muitas pessoas acreditam que o ato de comparar produções artísticas é desprovido de sentido. O mesmo aconteceria no tocante às comparações entre as mentes que produzem a arte. Seriam igualmente inúteis. Confesso que penso totalmente diferente. Comparar duas obras de arte não significa necessariamente que uma será exaltada e outra desprezada. Pode-se até perceber a superioridade de uma das produções tratadas, mas uma boa análise comparativa nunca tem o objetivo de ridicularizar ou menosprezar uma obra de arte. Esta sim, seria uma ação desprovida de sentido.

Após fazer esta declaração de princípios, vamos ao que interessa. No ano de 1999, dois filmes de guerra concorreram ao Oscar de melhor filme. Infelizmente nenhum dos dois foi vitorioso. Estou falando de O Resgate do Soldado Ryan (Saving Private Ryan), de Steven Spielberg, e Além da Linha Vermelha (The Thin Red Line), de Terrence Mallick. Ambos falam sobre a Segunda Guerra Mundial. A produção de Spielberg mostra a luta contra os alemães na Europa e a de Mallick tem o seu foco na luta dos americanos contra os japoneses no oceano Pacífico. Mas as diferenças não param aí.

O filme de Spielberg tem uma abertura de tirar o fôlego. A seqüência do desembarque de tropas aliadas numa praia da Normandia, no famoso Dia D, é de um realismo e um dinamismo impressionantes. A câmera tremida e inquieta, a barulheira, a crueldade da batalha, a sensação de caos e desespero nos transportam para uma realidade que ignorávamos, visto que os livros de História não conseguem nos dar esta dimensão épica e realista dos fatos. Todos imaginávamos tais fatos, mas vê-los representados daquela forma foi chocante. A indústria do cinema se rendeu à magia de Spielberg. Esta seqüência passou a ser uma referência não só para os filmes de guerra produzidos dali para frente, como também para os filmes de ação.

O longa conduzido por Mallick não tem nenhuma seqüência de batalha que chegue perto da dimensão épica da primeira meia hora da película dirigida por Spielberg. Entretanto, o roteiro e direção de Além da Linha Vermelha são muito mais coerentes, críticos e verdadeiramente pacifistas. No filme de Mallick, os questionamentos, os impasses morais e espirituais dos soldados se sobrepõem às cenas de ação. Todo o tempo os soldados e oficiais de baixa patente estão questionando seus atos e se perguntando sobre o sentido de toda aquela desgraça. Enquanto isso, alguns coronéis e generais manipulam o “moral” das tropas para atingirem os seus objetivos. Mas não há maniqueísmos. Até as razões e angústias dos oficiais “manipuladores” são mostradas. Apesar disso, o filme claramente não os isenta de sua culpa.

No filme de Spielberg, os oficiais não são questionados ou problematizados. São apenas colocados como protótipos do herói americano, principalmente o personagem de Tom Hanks. Os soldados não passam por verdadeiros dilemas morais. O tratamento da relação entre oficiais e tropas é visivelmente ingênuo e limitado.

Os pretensos “dilemas morais” de O Resgate do Soldado Ryan só servem para mostrar a fragilidade do roteiro, com seus personagens absolutamente estereotipados. Este é o principal revés do filme. Toda a trama e construção dos personagens é esquemática e recheada de estereótipos. O grande herói da trama, equilibrado e competente, é branco e professor. A “raça superior” e o racionalismo. Mais americano impossível. O soldado idiota que tenta levar uma menina e acaba morto é um latino. Ou seja, o latino, que é passional e emotivo por natureza, toma uma atitude sem pensar e acaba encontrando o seu fim. E o herói, o personagem de Hanks, ainda tenta avisá-lo do erro. Ou seja, o branco americano e racionalista ainda tenta ensinar o pobre e emotivo latino a agir certo, mas a inferioridade deste é latente. Mais estereotipado que isso impossível! Não, não é.

A película de Spielberg ainda traz outros estereótipos. O intelectual, escritor que na hora do combate se mostra um incompetente e covarde. Ou seja, o que o roteiro está nos dizendo claramente: intelectual só serve para pensar e escrever. Lutar não é sua praia. É um covarde perigoso, pois companheiros morrem por causa da sua covardia. O soldado judeu é vítima do soldado alemão, que só sobreviveu porque o intelectual implorou por sua vida no meio da trama. Traduzindo, intelectuais são covardes, incompetentes para lutar e não tem nervos para tomar a decisão certa, que no caso era executar sumariamente um prisioneiro desarmado! Uma mensagem nada pacifista, se pensarmos bem. O soldado alemão, que foi poupado pelo grupo, volta e mata personagens importantes. Óbvio que ele faria isso, afinal são seus inimigos. Não é isso que estou discutindo. O problema é o seguinte: a mensagem do filme é bem clara – quando tiver um inimigo desarmado em suas mãos, não hesite em matá-lo friamente. Certamente Hitler gostaria desta mensagem. Será que um filme desses pode ser considerado pacifista?

Em Além da Linha Vermelha, ao contrário, há uma cena simbólica em que um soldado americano vê um soldado japonês morto e com quase todo o corpo enterrado. Apenas o rosto está visível. O americano vê naquele rosto uma humanidade, que não é diferente da sua. Um outro soldado, menos sensível, tortura um prisioneiro japonês, mas, depois, é torturado pelas lembranças de seus atos imorais. A mensagem é totalmente oposta a do filme de Spielberg. Na produção de Mallick a violência aparece em seu caráter bestial, cruel, irracional e imoral.

Poderia estender esta comparação por mais tempo e, talvez o faça posteriormente, já que o tema é apaixonante. Mas, hoje ficamos por aqui. Independente da sua preferência, ficaremos contentes em ter a sua opinião. Contudo, se você ainda não pode opinar por não ter visto uma das películas, corrija este erro agora! Ambas produções têm suas qualidades e merecem ser apreciadas.

11 Comments:

  • Brilhante comparação, sócio! De fato, ambos são filmes importantes. Um se destacando mais por seu apuro técnico (o de Spielberg) e outro por seus aspectos filosóficos (o de Mallick). Neste sentido, ambos são veementes na denúncia dos horrores de uma guerra: O Resgate do Soldado Ryan com a visceral seqüência de abertura e Além da Linha Vermelha com os questionamentos feitos por seus personagens. No entanto, o primeiro acaba se distanciando da crítica da guerra ao abraçar a idéia de que ela pode ser justa. Num mundo em que proliferam conflitos, perpetuar tal crença é um desserviço à paz. Grande abraço!

    By Blogger Paulo Assumpção, at 4:54 PM  

  • Evandro,
    Não vi Além da Linha Vermelha. Infelizmente!

    Agora tenho que concordar com a crítica a Spielberg.

    abs,

    By Anonymous Anônimo, at 2:08 AM  

  • Comparações entre filmes de temas mais ou menos semelhantes são inevitáveis. Sempre fazemos nem que seja uma simples comparação. Não vi ainda o Além da Linha Vermelha do Mallick, mas o filme do Spielberg foi um marco para os filmes de Guerra. Ótima comparação que você fez. Do Mallick eu só vi O Novo Mundo e me decepcionei um pouco, apesar da excelente fotografia do filme. Eu mesmo até fiz uma comparação entre dois filmes recentes em meu blog, Conflitos Internos e Os Infiltrados, sempre é inevitável hehehehe. Abraço!!

    By Anonymous Anônimo, at 1:22 PM  

  • Disse tudo, sócio.
    Bem vindo de volta, Paulinho! Imagino que também tenha voltado a ativa no Não Sei Jogar. Ainda bem que concorda com as críticas, que não invalidam as qualidades técnicas da produção dirigida por Spielberg. Veja Além da Linha Vermelha!
    Comparações, quando feitas com elegância, sem menosprezar o trabalho de ninguém, são bem vindas, Cinema for all.
    Veja Thin Red Line! É primoroso e superior a Novo Mundo.

    By Blogger Evandro C. Guimarães, at 8:12 PM  

  • Oi Evandro! Ainda não assisti a Além da Linha Vermelha, um erro que vou tentar corrigir nessas férias. Quanto ao filme do Spielberg (um dos diretores que eu gosto muito), apesar de algumas seqüências de tirar o fôlego, eu concordo com você na crítica aos personagens. Abraços!

    By Anonymous Anônimo, at 9:33 PM  

  • O Spielberg também é um dos meus diretores favoritos, Ana. Recentemente escrevi um post sobre "A Cor Púrpura", um filme primoroso e encantador.
    Também acho que há seqüências de tirar o fôlego em "O Resgate do Soldado Ryan" e ressaltei este aspecto no texto. Não tenho nada contra este cineasta, que fique bem claro.
    Mas que o roteiro e a construção dos personagens tem erros imperdoáveis, isto é inegável!

    By Blogger Evandro C. Guimarães, at 7:24 AM  

  • Grande Evandro,
    O Resgate do Soldado Ryan tem como destaques a cena de abertura, antológica, e a do prisioneiro que foi poupado e que acaba matando o outro, pedindo para ele não gritar. Fantástico. No mais, não achei um filme memorável.
    Do Além da Linha Vermelha, rapaz, eu não lembro se o assisti!
    A sua resenha está soberba. Depois de muito tempo, resolvi voltar a escrever posts sobre filmes lá no Antigas Ternuras. Está lá. Sobre O grande Truque e O ilusionista. Dois bons filmes em um ano fraco cinematograficamente. Daqui a pouco vou fazer a entrega dos meus prêmios Pipoca Fumegante-2006 e Refrigerante sem gás e sem gelo-2006 e ainda tenho dúvidas...
    Um abração!

    By Blogger Marco, at 4:51 PM  

  • Dois filmes sublimes. O do Terrence Mallick, então, é um tapa na cara! Porém, ainda acho que o grande filme de guerra, entre todos os que assisti, é Nascido para Matar, de Stanley Kubrick. Esse vale a pena postar.

    By Anonymous Anônimo, at 11:04 AM  

  • Concordo plenamente com vc sobre o Resgate meu caro Evandro. Esse filme tem uma característica que eu considera uma das piores em qualquer filme. Quanto mais assistimos e nos acostumamos com o grande apuro técnico que eles exibem através de cenas impactantes, mais observamos as inúmeras falhas e defeitos que a obra possui. Já Além da Linha Vermelha é um dos meus preferidos no gênero, genial e realmente profundo. :)

    By Anonymous Anônimo, at 6:08 PM  

  • Grande Evandro,
    Voltei para te desejar um maravilhoso Natal, que a paz e a felicidade desta época esteja na sua casa, te envolvendo e à sua Simone também. Até 2007!

    By Blogger Marco, at 6:46 PM  

  • Ainda não assisti Nascido para Matar, Roberto. Tentarei corrigir este erro o mais rápido possível.
    Concordo inteiramente, Vladimir. Você disse tudo.
    Desejo-te o mesmo, grande Marco. Mais um ano de nossa amizade "virtual", que esse ano, felizmente, se tornou mais real. Isto porque conseguimos finalmente nos conhecer pessoalmente.
    E não vamos esquecer aquele grande encontro blogueiro. Janeiro vem aí!

    By Blogger Evandro C. Guimarães, at 10:16 PM  

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