sexta-feira, fevereiro 03, 2006

NAS ÁGUAS TURVAS DA VIDA

Uma mesma história pode ser contada de formas tão diferentes que a diversidade de resultados provavelmente causaria espanto. Em outras palavras, a ficção pode se prestar a tudo, desde a obra requintada, estruturada e emocionante até os infindáveis dramalhões de mau gosto de um folhetim eletrônico. Com certeza, já vimos em mais de uma novela televisiva a história de um pai que retorna para casa após anos de ausência mal explicada. O referido personagem é quase um estranho para os filhos e, geralmente, ou tem a missão de conquistá-los ou vai trazer sérios problemas para suas vidas já desgraçadas.

Felizmente, o excelente filme russo chamado O Retorno (Vozvrashcheniye) não cai nessas armadilhas vulgares das telenovelas, apesar de partir do mesmo pressuposto. Dois irmãos adolescentes vivem os conflitos e dificuldades típicas desta época da vida, quando são surpreendidos pelo repentino aparecimento do pai, que eles só conheciam através de fotos, em sua casa. Os adultos não fornecem explicações. Exigem apenas que os meninos aceitem a nova situação. Após as primeiras reações de descrença e perplexidade, os irmãos começam a ter sentimentos diversos em relação àquela nova conjuntura. O mais novo, ao mesmo tempo confuso e com gênio forte, não aceita muito bem a novidade. O outro irmão, visivelmente carente da figura paterna, aceita aquele misterioso pai de forma surpreendentemente rápida.

Os três saem para uma pescaria, mas o pai tem misteriosos planos que não revela aos meninos. Nesta tumultuada viagem, que mostra várias paisagens da Rússia, o convívio entre eles vai ficando cada vez mais tenso. As dúvidas, os questionamentos e até o medo tomam conta dos adolescentes. Contribui para isso o temperamento misterioso e autoritário do pai, que parece querer retomar os filhos no grito. A história pode parecer comum, mas a forma encontrada pelo diretor para contá-la é sutil e interessante. O espectador fica na mesma situação dos garotos. Não sabe o que está acontecendo e nem consegue imaginar para onde essa trama aparentemente simples vai caminhar.

No tocante à parte técnica, a película é, literalmente, de encher os olhos. Belíssima fotografia facilitada pelas sombrias e misteriosas paisagens russas. A direção é contemplativa, mas sem tornar o ritmo arrastado. A presença quase mística do lago, como se fosse um personagem, nas seqüências cruciais da trama, nos fazem lembrar das referências ao vento na clássica obra de Erico Verissimo, O Tempo e o Vento.

Chega a ser emocionante a sutileza com a qual o filme é conduzido. Além disso, as sugestões e as interrogações se sobrepõem às explicações fáceis e óbvias. Não há uma preocupação em revelar mistérios ou prestar esclarecimentos ao espectador. E o objetivo deste procedimento me parece claro: o mais importante para uma boa história não é revelar segredos (por que o pai se ausentou? por que voltou? o que vai fazer na misteriosa ilha?) e sim mostrar a humanidade e os laços emotivos que se formam entre seus personagens. Neste caso, longe dos heróis do cinema norte-americano, eles são pessoas comuns, com seus defeitos, suas implicâncias mútuas, mas também humanos e emotivos.

Seria uma heresia não ressaltar o excelente trabalho dos atores que interpretaram os dois irmãos: Vladimir Garin e Ivan Dobromravov. Estes jovens atores conferem a seus personagens uma espantosa verossimilhança. Quando vemos Andrey e Ivan, tão verdadeiros em seus conflitos e também no forte sentimento que os une, podemos ver a relação entre irmãos que nós, pessoas comuns, vivemos em nosso dia-a-dia.

No fundo, este talvez seja o maior mérito desta obra tão rica em qualidades. Não é uma revelação bombástica feita no final, nem seqüências de ação, nem o heroísmo gratuito e inverossímil (características mestras do cinema hollywoodiano), que fazem de O Retorno um filme inesquecível, mas sim a sua emotividade, a sua humanidade e até mesmo a sua discreta melancolia. É uma história de pessoas “reais”, com seus defeitos, ódios, desconfianças, carências, fragilidade e, ao mesmo tempo, com o seu amor, solidariedade e respeito.

6 Comments:

  • Sócio, este é mesmo o filme cujo jovem protagonista (Vladimir Garin) morreu afogado. Por uma daquelas tristes ironias do destino, no mesmo “lago-personagem” do filme. Tenho certeza de que nossos leitores menos afeitos ao cinemão apreciarão bastante este seu post e, por extensão, o filme. Aliás, preciso conferi-lo. Se bem que agora vai ficar difícil. Volta ao trabalho, candidatos ao Oscar estreando...

    By Blogger Paulo Assumpção, at 2:50 PM  

  • Olá, Evandro!

    Ainda nao assisti a esse filme. Mas parece ser uma boa opção. Um grande final de semana pra ti!

    By Anonymous Anônimo, at 4:59 PM  

  • Grande Evandro!
    Rapaz, eu vi este filme na telona, quando foi lançado. Lembro de ter gostado. O conflito entre os filhos e aquele pai estranho (nos dois sentidos) é muito bem engendrada. Valeu.

    By Blogger Marco, at 6:50 PM  

  • Caro Evandro:

    Muito bem conduzido teu parecer sobre o filme em questão.

    Apesar de ainda não tê-lo visto,o vi em vera-efígie por tua condução magistral da trama.

    E esse "discreta melancolia" arrematou,douradamente,o total. E Essa alusão ao lago de Veríssimo...

    Retinas de luxo.

    Estimo aos borbotões estilos clarificantes,e Você está no rol da minha benquerença ao texto-degustal.

    Ainda volto para reler,porque certas coisas ganham proporção ainda mais saborosa numa segunda espionada.

    PS inútil: nunca li em nenhum lugar,mas acho que "Tieta do Agreste - a volta da filha pródiga",de Jorge Amado,é uma revisita d'A visita da velha senhora,da tragicomédia de Friedrich Dürrematt.

    Belo dominguê,amigo sétima arte!

    By Anonymous Anônimo, at 2:43 PM  

  • Esse é com certeza um filme que as pessoas deveriam descobrir. Dotado de uma simplicidade e extrema sutileza o filme decorre e cativa. Belo texto.

    By Anonymous Anônimo, at 3:12 AM  

  • Apostava tanto nesse filme que comprei logo de cara o DVD, e acertei!Belo e verdadeiro, sua força esta erigida nas dúvidas, alegrias e medo.

    By Anonymous Anônimo, at 4:24 AM  

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