A SIMPLICIDADE DA BELEZA
Esta belíssima adaptação do Rei Lear, de William Shakespeare, nos parece muito mais uma exaltação à arte do que um mero negócio. Cada cena, cada paisagem, cada gesto teatral dos personagens, nos leva a um deslumbramento que não pode ser medido. Um verdadeiro amante do cinema obrigatoriamente se emociona diante de uma obra concebida com tanta beleza e simplicidade.
Não há neste filme aquela postura arrogante que torna muitos filmes “artísticos” incompreensíveis ou desinteressantes. Muito pelo contrário. Trata-se de uma história conduzida com admirável sutileza e simplicidade. Os personagens estão ali expostos com a sua arrogância, ambição, torpeza, ódio e - por que não? - amor, perdão e lealdade. Não precisamos filosofar muito para desvendar suas motivações e paixões. Contudo, em momento algum, a história é simplista ou reducionista. Parece que Kurosawa quer nos mergulhar nesta contradição essencial do ser humano: somos tão complicados e incompreensíveis, mesmo na simplicidade de nossos desejos e anseios.
Em termos técnicos, o filme literalmente nos enche os olhos. A fotografia parece ser dotada de um caráter próprio. Por vezes o céu retratado pela câmera está claro e vigilante, como se dissesse aos personagens: “estou vendo o triste teatro que representam”. Em outros momentos, as nuvens sufocantes parecem julgar e condenar a postura dos personagens. As paisagens não são superproduzidas. Nos cativam por sua beleza singela. Parecem também personagens e interagem com estes. Isto fica evidente na cena final, onde um cego caminha hesitante no alto de um precipício. O personagem e a paisagem que o contrasta parecem ter a mesma melancolia. Ele, por não poder ver o mundo que o cerca, e a paisagem, por não poder deixar de ver a brutalidade humana em toda a sua força destruidora.
A teatralidade dos personagens em momento algum soa artificial ou forçada. Vivem intensamente os sentimentos que os dominam. Há uma certa “crítica social” inerente ao texto. Os personagens centrais são membros de uma nobreza, servidos por inúmeros vassalos. E são exatamente os que agem de forma mais vil e imoral. Já os personagens mais íntegros da trama são vassalos leais a seus senhores. Os subordinados são mais honrados, sábios e serenos. É de um desses servos a passagem mais poética desta obra. Uma espécie de “bobo da corte” que servia ao velho Hidetora (o rei Lear da história), diz diante do corpo inerte de seu mestre: “Onde estão os deuses?” O vassalo responde: “Cale-se! Chega de blasfêmia! Os deuses é que choram por nós... O homem poderia viver em paz, mas prefere a guerra e o ódio!” É impressionante a força de uma mensagem tão simples e óbvia para muitos que, no entanto, nos leva à reflexão sobre a nossa vida e o mundo que nos cerca. Essa é a força e a beleza do cinema!
Se premiações como o Oscar fossem dadas apenas por qualidades artísticas, e Ran não fosse um filme japonês, com certeza faturaria as estatuetas de todas as principais categorias. Mas, parafraseando a dama Fernanda Montenegro, premiações são 99% negócio!
P.S.: Podem me acusar de ter exagerado ou supervalorizado as qualidades desta inigualável película de Akira Kurosawa, mas não esqueçam de que sou simplesmente humano e passível das mesmas paixões dos personagens, principalmente a paixão pelo belo!
EVANDRO C. GUIMARÃES
8 Comments:
Sabes que o cinema de Kurosawa e uma das filmografias que pouco conheço (com exceção de Sonhos), tenho que retificar este erro.
By Anônimo, at 12:40 AM
Um filme repleto de metáforas visuais punjantíssimas,porém acessíveis,pois a emoção do belo sobrepuja qualquer entendimento .
Abraço,xará. Aproveite bem a "sabadeira"...
By Anônimo, at 1:16 AM
Evandro: O cinema é um negócio para produtores e investidores. Para os artistas, certamente é meio de vida mas é principalmente arte e expressão. Você resgatou um filme particularmente belo. Não é o meu favorito do Kurosawa (tenho verdadeira paixão por "Dersu Usala"), mas é um filme formidável. E é sobre a minha peça favorita de Shakespeare. Bom post. Um forte abraço.
By Marco, at 11:25 AM
E pq não "O Segredo de Brokeback Mountain" e sim Crash?? Não entendi essa decisão deles. Vou ver o resto do blog pra ver se eu vejo alguma resposta convincente...
Todos esperavam "The Broke...
By Anônimo, at 3:40 PM
Evandro,desculpe o descuido pelo xará como se fosse post do Paulo,mas Você também o é na acepção de companheiro ao amor cinematográfico,e pela tua irreprensível cortesia.
Belo dominguê,meu bom.
By Anônimo, at 9:22 AM
Evandro,meu caro: se eu não corrigir,não conciliarei o sono...
Leia-se entre um e outro post: pujantíssimas e irrepreensível.
Bom dia para todos estes porretas que freqüentam este indispensável blogão!
By Anônimo, at 2:13 AM
REalmente cinema vem se tornando muito mais negócio do que arte ha já algum tempo (em alguns casos ele sempre foi negócio), mas sempre vamos ter exemplos contrários a isso. Acho que as obras de mestres como Kubrick, Kurosawa são provas disso.
By Anônimo, at 6:06 PM
Possuo RAN em DVD há dois anos. Não vi até hoje, e percebe-se que isto é um crime a ser sanado.
Cumps.
By Gustavo H.R., at 3:08 PM
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